domingo, 22 de setembro de 2013

Limpar o Peixe

Faço os meus oito Km de corrida na orla de Copacabana, onde aos domingos tem sempre alguma atividade ou manifestação. No último, logo no início me deparei com a “Caminhada da Superação” e nela participavam pessoas que haviam sofrido algum tipo de acidente ou que nasceram com alguma lesão. Manifestavam na busca de um olhar atento e legítimo das autoridades sobre legalidades e, portanto conquistas de direitos. Havia um jovem rapper que falava que depois do acidente que o levou a cadeira de rodas, encontrou profundo significado na vida. Disse ter descoberto a importância do outro e que a partir de então passou a se sentir imerso em um destino precioso, mais interessante do que antes quando tinha total mobilidade.
Sem interromper a minha corrida, esta fração do que ouvi do depoimento me levou a pensar sobre o filme “Eu, Anna” baseado no livro homônimo escrito pela psicanalista Elsa Lewin.
Nele, Anna Willes, interpretada pela atriz Charlotte Rampling, é uma mulher divorciada que mora num apartamento de sala e quarto com a filha e a neta Chiara.
Anna sentindo-se perdida e desamparada depois de um fim de um casamento de quase trinta anos e sem ter um lugar para verbalizar e, portanto nomear o sofrimento, passa os dias num movimento de vida solitário, carregado de um “choro para dentro” tão comum na vida de tantas Annas, Jorges, Maurícios e Andrés. Ela nessa condição de solidão destituída da possibilidade do dizer e sem pontes para se conectar com o mundo exterior começa a desconectar-se parcialmente da realidade e passa a viver de forma siderada, como se fosse uma sonâmbula da existência.
Repete com este “ensimesmamento” doloroso o movimento sonolento de seu cotidiano.
Um dia, imersa nesta ausência de foco, leva sua neta ao parque e a esquece numa calçada e Chiara acaba por encontrar a morte ao sair sozinha do carrinho de bebe e ser atropelada... Anna é então abandonada mais uma vez agora pela filha que fica no choque impossibilitada de conviver com a mãe. 
Quantas e quantos choram para dentro, num movimento solitário de desconexão com os vínculos que os ligariam a vida.
Se Anna não pôde, não sabia e não foi orientada a chorar para fora, ou seja, partilhar com alguém a dor, ficou como afirmou o psicanalista Lacan com “a representação do sofrimento isolada no inconsciente e portanto impedida de distribuir a descarga de tensão”.
Tudo então permanece dentro e se torna uma bola de fogo enlouquecida.
Quem já não sentiu um sofrimento arder por dentro?
A tensão interna necessita se socializar e encontrar uma saída acolhedora e saudável.
Necessitamos para não entrarmos em falência emocional encontrar o espaço de simbolização e nomeação dos sentimentos bons e ruins.
Mais adiante ainda na minha corrida de domingo na altura do Posto 6, estava instalado o 3º Festival de Gastronomia do Mar e ouvi o chefe com um sotaque francês dizer ao microfone algo assim: “Vou agórra enshinar a limpar um liguaaado. Son pocos os que sabiem fazê-lo e porrr iiiso son igualmente pocos que conseguem  potenncializarrr o sabor deste peisse”
Pensei na hora que peixe pode simbolizar a vida e que se deixarmos de saber limpa-la, deixamos também de potencializarmos o sabor dela.
Vida não muito bem preparada ganha sabor insosso.
Vida sem boa limpeza ganha sabor amargo.
Alguns condenam a arte de ensinar a preparar a receita da vida, como se apenas por instinto todos pudessem sabê-lo.
Concordo que todos podem, mas alguns permanecem como Anna comendo apenas os prantos, nos desenganos, sem saber retirar as partes amargas. Ela no desespero se encurralou na solidão emocional até chegar ao estado limítrofe e se posicionar no beiral da sacada de um apartamento pronta para jogar fora as chances de reviver. 
É salva pelas mãos fortes e boas do policial investigador que soube olhar o que parecia impossível perceber... Soube que aquele beiral era o seu pedido de socorro supremo.
Aconchegada a cabeça no ombro acolhedor deste homem, as lágrimas correram para fora... e assim a alma se colocou no recomeço.
O Chefe do Posto 6 prepara o peixe mais saboroso. O rapper que discursava na caminhada da superação em sua cadeira de rodas falava da própria técnica de se limpar dos acontecimentos dolorosos. Falavam os dois chefes a todos que estavam dispostos a aprender e sobretudo a apreender sobre o “Limpar o Peixe de Cada Dia”.
Há um pensamento freudiano que sempre me orientou: “O amor é marcado pela compulsão. Amar é invariavelmente amar pela segunda vez”.
O que diz?
O amor fica a espera de amar de novo. O amor adora encontrar algo para amar. O amor é guloso. Anseia por um novo encontro e assim permanecer vivo.
Por isso quando algo interrompe uma relação de amor que temos com alguém, com algo temos que buscar olhos de chefe que limpem o peixe e descubra algo que nos leve a amar a vida pela segunda vez.
O milagre da multiplicação dos peixes é assim: um peixe nosso de cada dia...
Anna amou a vida pela segunda vez, através do ombro de um chefe do acolhimento...
Por que deixar passar o festival?
Inspirado nesse festival da gastronomia do mar ouso criar uma receita... Uma vez que minha especialidade é “gastronomia existencial”, para comemorar o 25º ano do Grupo de Estudos Pensar, que idealizei e ministro as aulas, me transformo em um “chefe de cozinha" carioca que se inspira nas receitas freudianas...
O Peixe Nosso de Cada Dia.
Retire as escamas do seu olhar.
Limpe a cabeça dos ressentimentos. 
Salpique com Perdão ao Destino.
Faça um caldo com lágrimas de alívio e preciosidade de novos propósitos.
Polvilhe com desejo de viver. 
Deixe de molho no amor.
Ponha para assar algumas horas com o calor de suas esperanças em brasas.

Depois de pronto? Sirva-se.
Ótimo para fortalecer e comemorar a ressurreição.

Ps. Se amou, pode amá-lo pela segunda vez, pois é livre de caloria, sem riscos de ganhar peso. Ao contrário, fortalece e propicia a leveza no viver... 

13 comentários:

  1. Respostas
    1. Eliana
      Obrigado...Vamos limpar o peixe nosso de cada dia.
      Manoel

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  2. Assisti ao filme e pude ver como o sofrimento recolhido causa tanta dor. Vivi assim por alguns anos engolindo meu sofrimento, deixando as escamas sobre meus pensamentos. Agora passo a passo estou retirando essas escamas ainda com dor mas tendo conhecimento do que me fez sofrer.

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    1. Já se tornou chefe de sua existência...Parabéns
      Nós todos temos que limpar os alimentos para que a vida seja saborosa e viável.
      Manoel

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  3. Que beleza.... limpemos os peixes, então. Eu fiz um para mim e sabe..... estava muito saboroso, Grata Manoel por essa linda reflexão. Ana Maria de Carvalho

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    1. Ana Maria
      Surpresa...Saudades.
      Que as boas receitas estejam sempre presentes.
      Um beijo,
      Manoel

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  4. Manoel
    Além do conteúdo maravilhoso, como vc escreve bem!!! É um poeta. Parabéns por essa analogia maravilhosa, pela receita de vida absolutamente linda. Bjjs

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  5. Prezado Manoel,
    Como sempre, vc nos coloca para refletir. Desta vez sobre o ensimesmamento, a falta de condições para por para fora nossas emoções, que podem variar entre a angústia, a raiva e a tristeza, entre outros sentimentos. Em casos graves, leva ao suicídio ou a atos impensados de violência contra outras pessoas. O que me pergunto é como identificar quando a pessoa entra num estado patológico e perigoso, se ela não expressa suas emoções? E, quando identificado, como retirá-la deste congelamento e como tratá-la, pois sabemos que isto é difícultado pela falta de condições econômicas da maioria da população. Isto me leva a um outro ponto crucial da nossa sociedade, que é a falta de unidades especializadas no atendimento dos problemas mentais no Brasil. Gostaria de sugerir, se não for pedir muito, que vc nos orientasse sobre as condições do serviço público de atendimento às pessoas que sofrem de distúrbios mentais. Ou mesmo de tratamento psicológico mais em conta. Afinal, somente uma mínima parcela da população consegue tratar-se e ter alguém como vc para ajudá-las.

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  6. Adorei a "receita"! Muito bom participar destas aulas de "gastronomia existencial" com vc! bjs, Lilian Mota

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  7. Oi Manoel! Amei a crônica, como é maravilhoso poder começar a semana com um texto tão inspirador, com "temperos" divinos para aproveitarmos o melhor da vida. Vc é um MESTRE. Bjs. Alessandra

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